O Centro de Direitos Humanos Dom Oscar Romero publicou, nesta terça-feira (11), uma carta expressando sua opinião com relação aos últimos posicionamentos sobre o trabalho dos defensores dos Direitos Humanos no Brasil.
Leia a carta na íntegra, abaixo, assinada pelo Padre Saverio Paolillo, missionário comboniano:
Não somos defensores de bandidos: diálogo com a sociedade para esclarecer os equívocos sobre o trabalho dos defensores de Direitos Humanos
Qualquer ação que culmine no desrespeito à dignidade do ser humano constitui um ato de lesa humanidade. Deve ser encarada com indignação por parte da coletividade.
As violações aos Direitos Humanos não só humilham a vítima, mas rebaixam toda a comunidade e degradam a raça humana, sobretudo quando contam com o apoio explícito ou a omissão da sociedade.
A criminalização dos defensores dos Direitos Humanos
O respeito pela dignidade e a luta em defesa dos Direitos Humanos deveriam ser inclinações naturais de qualquer pessoa. Constituem tarefas obrigatórias para todo ser humano. Mas, infelizmente, não é isso que vivenciamos. O aumento assustador dos índices de violência e a desvalorização da vida estão transformando a defesa dos Direitos Humanos numa exceção, numa luta solitária de uns poucos idealistas inspirados em valores éticos e religiosos que, inclusive, acabam sendo perseguidos por setores da sociedade que, por má fé ou por superficialidade, identificam o compromisso em defesa dos Direitos Humanos com a proteção a bandidos. É dessa perigosa equação que surgem equívocos que precisam ser desmontados:
Primeiro equívoco: “Direitos humanos para os humanos direitos!”
Os Direitos Humanos não são um favor, um ato de caridade, uma concessão benevolente de benfeitores da humanidade ou um prêmio concedido a quem se comporta bem. Nem a dignidade humana cessa de existir ou fica suspensa se uma pessoa comete um crime. O homem e a mulher, pelo simples fato de sua condição humana, são titulares de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado em qualquer circunstância. Os Direitos Humanos são inerentes à própria natureza humana. Emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Constituem um direito adquirido que ninguém pode sonegar. Estão gravados em seu patrimônio genético. Entram em cena desde o momento da concepção da vida e seu reconhecimento concreto é determinante para o desenvolvimento integral do ser humano. Portanto, são universais, invioláveis, inalienáveis, imprescritíveis e exigíveis. Violá-los como forma de punição é optar pelo desprezo da dignidade humana. O ser humano é muito mais daquilo que faz ou deixa de fazer. Ninguém pode se atribuir o direito de identificá-lo com seus atos criminosos. É justo que seja responsabilizado pelos seus delitos, mas sem que haja comprometimento de sua intrínseca dignidade e sem perder a esperança na sua recuperação. Toda vez que se desrespeitar a vida e a integridade física e moral do ser humano e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e dar-se-á uma perigosa contribuição ao processo de degradação da sociedade.
Segundo equívoco: “Os direitos humanos passam a mão na cabeça de bandido e não olham o lado das vítimas”.
Há quem acredite que o reconhecimento dos Direitos Humanos inviabiliza a responsabilização e a punição daqueles que cometem crimes e acaba “aliviando a barra” dos agressores fazendo pouco conto do sofrimento das vítimas. Isso não é verdade. Os defensores de Direitos Humanos são solidários com a aflição das vítimas, não compactuam com nenhum tipo de delito e não defendem mordomias para aqueles que os praticam. Eles estão preocupados com o aumento assustador da violência. Inclusive, eles mesmos sentem na pele os efeitos destruidores da criminalidade. Mas, ao mesmo tempo, estão em permanente alerta para evitar que a gravidade da situação não se torne o pretexto para um combate violento à violência. A sociedade não pode cair na tentação da barbárie. “Justiça deve ser feita!”. Mas, infelizmente, o que as pessoas chamam de Justiça está muito mais para Vingança do que para Reparação. O anseio por Justiça está se tornando uma roupagem civilizada para camuflar nossa natureza bárbara que quer aflorar com a sede de vingança.
“A Justiça deve ter como essência a reparação do mal causado, ao invés a utilizarmos para causar dor e sofrimento ao transgressor. Afinal nada é reparado quando torturamos, mandamos alguém para a cadeia ou o executamos com uma injeção letal, apenas saciamos nossa vingativa sede de sangue retrocedendo para o código de Hamurabi” (Bernardo Machado).
É equivocada a abordagem de quem acha que a violência deve ser enfrentada com o recrudescimento e a exacerbação das penas. A história do sistema penitenciário brasileiro nos mostra exatamente o contrário. Um sistema punitivo violento e aviltante só desencadeia mais violência. É hora de sentar para uma reflexão profunda. O enfrentamento à violência exige várias respostas muito mais complexas do que a construção de um sistema punitivo e vingativo. Precisa investir mais na prevenção reduzindo os fatores que incentivam a prática da criminalidade. É necessário assumir um sério compromisso contra a impunidade que favorece a proliferação da violência, estimula a criminalidade, encoraja a ousadia do agressor e leva descrédito para com as instituições. Enfim, precisa construir um modelo de justiça que ajude a quebrar o círculo da violência através da recuperação do agressor, a reparação dos danos, a superação dos traumas causados pelo crime e a restauração das relações sociais entre agressores e vítimas. É nessa linha que se insere o trabalho dos defensores de Direitos Humanos.
Já imagino a objeção que muitos gostariam de fazer nessa hora: “E se um marginal estuprasse sua filha o que você faria?”. Respondo com outra pergunta: “E se seu filho, aquele que você mais ama, estuprasse minha filha; o que você faria?”. Já vi muitas pessoas invocando punições severas para com os filhos dos outros, mas fazer maior correria para livrar a cara dos próprios quando se envolvem num crime. É fácil apontar o dedo para os outros. O filho do outro é maconheiro. Meu filho é doente. O filho do outro é trombadinha. Meu filho é estudante. O filho do outro não presta, o meu merece uma chance. É esse cuidado que temos com os nossos entes queridos, mesmo aceitando que sejam punidos pelos seus delitos, a fórmula para acabar com a violência. Provavelmente vai dizer que filho seu nunca vai fazer isso. O dia de amanhã ninguém sabe.
Terceiro equívoco: “Os Direitos Humanos são direitos de bandidos!”
Essa afirmação demonstra total desconhecimento da luta dos defensores de Direitos Humanos. Hoje em dia eles estão envolvidos em todas as áreas visando a garantia de todos os Direitos Humanos. Mas é inegável que há uma concentração do esforço dos defensores dos Direitos Humanos nas pessoas que cometem crimes. Isso se explica, pelo menos, por dois motivos: primeiro porque a maioria dos “criminosos” pertence àquelas camadas da sociedade empobrecidas e desumanizadas pela negação do acesso aos Direitos Humanos. Com isso não se pretende justificar a violência, mas não dá para negar que o desrespeito pela dignidade humana ocasionada por um sistema econômico injusto e uma sociedade excludente constitui uma das portas de acesso à criminalidade. A maior parte da população carcerária é constituída por pobres e negros não porque estes sejam mais bandidos do que os brancos e os ricos, mas porque são pobres; isto é, não têm os meios financeiros para ter seus direitos garantidos.
Portanto, optar, hoje em dia, pela população carcerária, é optar pelos mais pobres. Enquanto os ricos e poderosos se safam da cadeia por terem a possibilidade de contratar habilidosos defensores, a maioria dos encarcerados apodrece nas masmorras do sistema penitenciário brasileiro que é uma “escola pública’ de criminalidade.
O segundo motivo dessa preocupação dos defensores dos Direitos Humanos por aqueles que cometem crimes é porque eles são mais alvos da fúria policial e da truculência de desprezadores dos valores humanos.
Quarto equívoco: “Os direitos humanos atrapalham o serviço da polícia”
Infelizmente há ainda quem acredite na incompatibilidade entre Direitos Humanos e segurança pública e recorre à violação de direitos, ao uso da força e à tortura para extorquir informações e solucionar os casos. Na realidade essas práticas são sinais de incompetência da polícia e acabam afastando a população. A sociedade precisa da polícia e esta tem o dever de garantir a segurança pública. “A pessoa incumbida da segurança pública, tem o dever de exercer a autoridade concedida para tal fim, sob pena de estar prevaricando, mas não pode extrapolar, sob pena de estar praticando abuso de autoridade. Prevaricação e abuso (ou desvio) de autoridade são crimes. Com efeito, a atividade daquele que lida com a segurança pública é deveras importante, mas exige-se sempre o bom senso e o equilíbrio nas ações, até porque estas se refletem como um todo na sociedade. Daí porque o preparo emocional (inclusive sua manutenção constante) e o preparo técnico (jurídico sobretudo, porque a operacionalidade para a polícia pressupõe, acima de tudo, embasamento jurídico-legal) são lados da mesma moeda” (Luiz Otávio O. Amaral).
O policial violento revela pouco profissionalismo, vira criminoso e gera o desprestígio social de uma categoria que para o bem da sociedade precisa ser revalorizada.
“A percepção por parte da população de que a policia respeita os Direitos Humanos, é honesta e trata as pessoas de forma justa é indispensável na construção de boas relações com a comunidade, sem o que não há bom fluxo de informações. Destaque-se que não há polícia eficiente em qualquer lugar do mundo que não seja respeitadora dos Direitos Humanos. Nesse sentido os Direitos Humanos, ao invés de constituírem uma barreira para a eficiência policial, oferecem a possibilidade para que o aparato de segurança se legitime face à população e conseqüentemente aumente a sua eficiência, seja na prevenção, seja na apuração de responsabilidades por atos criminosos” (Oscar Vilhena Vieira).
Os defensores de Direitos Humanos são parceiros da polícia eficiente e profissional, mas são adversários da polícia bárbara, violenta e truculenta.
Padre Saverio Paolillo (Pe. Xavier)
Missionário Comboniano